quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Eu te desafio

I dare you, to be real
To touch a flickering flame
The pangs of dark delight
Don't cower in night fright

Double Dare – Bauhaus


Eu te desafio a fazer uma página viver. A fazer uma página sangrar mentiras que levem a alguma verdade. Eu te desafio a ouvir a voz do fogo e criar moldar encantar a partir da combustão de suas próprias ideias sentimentos desejos. Eu te desafio a destruir e criar num ciclo sem fim (a serpente que morde a cauda que é mordida pela serpente que morde a cauda que é mordida pela serpente...).

Eu te desafio a mergulhar no abismo do medo. A fitar o olhar repleto de vazio do medo. A aspirar a fragrância suavemente apodrecida do medo. A sentir o toque morno do medo. A provar o gosto amargo do medo. A ouvir a sinfonia monótona do medo. Eu te desafio a engolir o medo digerir o medo e metabolizar algo novo a partir do maldito medo: eu te desafio a ser mais do que sua autopreservação.

Eu te desafio a conjugar o verbo amar com a sinceridade pontiaguda que apenas podem ter aqueles cujo coração foi abençoado amaldiçoado por inúmeras cicatrizes: aqueles que têm a sabedoria tortuosa que só aos loucos é permitida porque só eles entendem que uma bifurcação na estrada não é uma simples questão de escolher excluir, mas a oportunidade de criar um outro caminho.

Eu te desafio a sonhar sua vida e a viver seu sonho porque o sonho é o sopro do verbo divino que a anima o barro do pragmatismo. Eu te desafio a aceitar que sua racionalidade é uma ilusão tão ilusória que precisa ser inculcada em sua cabeça desde a escola: eu te desafio a aceitar que não é um ser racional, mas um ser simbólico.

Eu te desafio a fazer a travessia pelo prazer da travessia, a aprender sem se preocupar com o uso prático do que aprende, a estar no meio, a estar no espaço entre: eu te desafio a estar nas mil nuances de cinza que existem entre o mais profundo preto e o mais profundo branco, porque o maniqueísmo é uma ilusão.

Eu te desafio a se machucar, a se magoar, a se queimar. Eu te desafio a não ter um sorriso coagulado um espírito encarcerado um sonho pasteurizado: eu te desafio a desprezar com todas as suas forças o verniz de perfeição que todos tentam ter.

Eu te desafio a ser real, seu maldito filho da puta, ah, eu te desafio...

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

eu, que nunca vou correr com os lobos
voar com os gaviões
ou nadar com os tubarões

eu, que não sei pôr numa foto um sorriso sincero simples espontâneo
eu, que não sei me vestir seguindo as tendências impositivas da moda
eu, que não sei me desidentificar com o grotesco sagrado marginal dos monstros
eu, que não sei me preocupar com roupas passadas nem com cama arrumada
eu, que não sei sentir uma data comemorativa no calendário do meu coração
eu, que não sei aceitar um elogio sem questioná-lo de mim para mim
eu, que não sei fugir da ironia que sei que pode me afastar daqueles de quem gosto
eu, que não sei não me valer de uma despedida coletiva em uma reunião
eu, que não sei não me surpreender porque tenho amigos que me ligam às vezes
eu, que não sei ser um escravo submisso e sorridente das coisas que tenho
eu, que não sei me apaixonar pelas exuberantemente perfeitas capas da Playboy
eu, que não sei distinguir os diferentes (tão diferentes?) modelos dos carros
eu, que não sei glorificar os que deveriam (deveriam?) ser meus heróis do futebol
eu, que não sei me empolgar com o último best-seller do novo autor mais vendido
eu, que não sei ser a universidade cujo nome está em meu diploma
eu, que não sei ser o emprego para o qual tanto me preparei
eu, que não sei deixar de ser estrangeiro nem comigo mesmo
eu, que não sei desejar as mesmas fatias de vida que os outros desejam
eu, que não sei me conectar com a maioria dos meus irmãos humanos

eu...
que desaprendo todo dia
a ser objetivamente pragmático nas minhas escolhas desejos sonhos amores

eu, que comungo com a impureza
porque cada cicatriz agrega a lembrança de uma imprudência nossa para com os outros ou dos outros para conosco
porque cada celulite é uma cordilheira minúscula abissal de frustração e fuga de um padrão que só existe em pessoas de plástico
porque cada verruga traz consigo a vergonha da falta de monotonia do relevo epidérmico e macula a embalagem (embalagem de quê?)
porque cada pelo que não deveria estar no lugar em que está de acordo com o que dizem cada vez mais hoje nos lembra de como podemos ser animalescos

há história por trás de cada uma dessas marcas
e a beleza vem desse passado meio esquecido meio relembrado meio ignorado
que caminha com o presente – eterno já ter sido – para um futuro de gloriosa incerteza
a beleza vem da história
e há vida por trás disso
tanta vida nas histórias que se quer esquecer
tanta vida no medo de sentir
tanta vida nas falhas vergonhosas
tanta vida nos vícios secretos
tanta vida nos percursos só percursos
tanta vida...

sou irmão dos que têm medo de amar e amo temerosamente e temo amorosamente suas falas reticentes suas dúvidas incoerentes seus suspiros reprimidos seu isolamento pervertido suas falas disfarçadas suas brechas que se abrem e se fecham às vezes parecem abertas às vezes parecem fechadas depende da luz depende de se o dia está nublado depende da direção do vento depende de o quanto é importante para quem espera o retrato de um sorriso de aquiescência (sempre a amar temerosamente a simetria dessas brechas – as listras de experiência do tigre de Blake)

sou irmão dos que se viciam porque o vício é o que no final dos finais nos move a todos porque o vício é tudo que alivia a dor e dói em mim a minha existência a existência de todos e me vicio no que é licitamente ilícito me vicio no que é ilicitamente lícito porque dói estar aqui, maldita dor de ser, não de ser eu, mas de ser, intransitivamente ser, e tudo esboroa e o centro não segura, Yeats, tudo esboroa e nos viciamos em amor álcool trabalho sexo literatura internet exercícios cinema festas para tentar ser outro ser outros ser tudo menos nós menos eu, eu, peregrino sem rumo de mim mesmo

sou irmão dos que falham e entendo de quebrar com brutalidade as expectativas dos outros e as do pior juiz que tenho que sou eu, eu que me cobro ser o que não sou que gostaria de ser o que não sou o que nunca serei, cercado por um mar de príncipes e semideuses que parecem ser o que mais há nessa vida, disse uma das pessoas do Pessoa à qual sempre recorro quando as minhas falhas quando os meus erros gritam alto demais para mim de dentro de mim em mim obscurecendo todo o resto (não há resto – há o perpétuo falhar)

sou irmão dos que vivem a travessia e não se importam com o ponto de partida e o ponto de chegada porque o que importa, o que rosianamente importa é o onde inconstante onde se aprende a ser: a viagem, o mundo é a viagem o sonho é a viagem o amor é a viagem (quem ousa pensar no fim do mundo no fim do sonho no fim do amor quando está mundeando sonhando amando?)

como digo a meus irmãos que ser errado é ser sublime?
como digo a meus irmãos que só os corajosos olharam dentro do abismo do medo?

como digo a meus irmãos
que
somos
irmãos
?
Os lobos, de dentro das paredes, uivavam para a lua de seus desejos
Os tubarões, sempre silenciosos, singravam mares de obsessão sanguínea
Os falcões cruzavam, com o orgulho dos falcões, céus subjetivos
Os insetos se debatiam dentro de casulos de sonhos paranoicos
Um anjo feito de chuva conversava comigo sobre evangelhos não escritos

E eu esperava por você

Calor

Say the words
I long to hear
Pinch, bite, kiss, suck, lick
and sear
In a pyromantic way,
I’m her slave
Living for her to ignite

Pyretta Blaze – Type O Negative


Eu sei que vai parecer estranho que eu consiga me lembrar com uma clareza tão lúcida de tudo que vou contar agora, dado o momento em que estou contando. Mas... eu me lembro. De cada detalhe. De cada olhar, de cada sorriso, de cada impressão, de cada sussurro e, acima de tudo, eu me lembro do calor...

Eu vivia só. Eu morava com meus pais e mais dois irmãos, mas isso não quer dizer que eu não estava só. Pode parecer que eu esteja me queixando de falta de atenção ou algo do tipo, mas não estou. Sempre foram bons para mim. Os problemas que tínhamos, imagino que fossem os que toda família tem, em um grau ou outro. Eu admito que até preferia saber que existiam os problemas, caso contrário, seria utopicamente irritante existir, estar com eles, tentar ser parte deles. Sendo este último item algo no qual nunca fui muito bom. Nada pode ser muito bom, muito perfeito, se for, nós estragaremos, de um jeito ou de outro. Nada pode ser muito bom, muito perfeito... mas ela era. Causticamente perfeita.

Mas, eu ainda estou falando de minha família, ou, ao menos, tentando. Se é importante que eu fale deles agora? Acredito que sim, por dois motivos: uma tentativa de mostrar por eles algum respeito e admiração, até mesmo uma sensação de débito que minha amoralidade nunca permitiu que eu demonstrasse antes, e ajudar a ambientar a minha breve narrativa do que aconteceu naquela noite, ou melhor, do que está acontecendo agora, nesta noite, neste instante... o tempo está confuso, quase como se eu estivesse além dele, vendo as coisas sem levá-lo em consideração. Será isso possível? Estar alheio à cronologia? Caminhar por fora do tempo? Nunca havia pensado nisso antes, mas acredito que sim, pois estou me sentindo assim agora.   

Eu vivia só. Eram bons pais, eram bons irmãos, era uma boa família, mas eu nunca me senti parte dela. Devo dizer que, na verdade, nunca me senti parte de nada. Os conselhos que me davam somente eram percebidos por mim durante o breve instante em que entravam por um ouvido e saíam pelo outro. Dedicava-lhes a atenção que se dá a um folheto religioso que se recebe na rua quando a última coisa em que você está pensando é em ser religioso. Jogava os folhetos na primeira lixeira, sem sequer me dar ao trabalho de amassá-los, tal era a importância que tinham para mim. Do mesmo modo era com os conselhos e sugestões de meus pais. Imagino que eu também fazia isso com suas palavras de afeto e coisas desse tipo, comuns à vida em família. Não é que eu não gostasse, mas não era o ser humano mais empático do mundo... era indiferente. Como se todas as sensações normais, o que todos sentem ou querem sentir, não me dissessem muita coisa. Eu queria algo mais, que eu ainda não sabia o que era.

Meu problema com meus pais era meu emprego. Talvez eu não possa nem dar a essa situação o status de problema, porque eu nunca lhe dei atenção suficiente para que assim fosse. Acho que um problema somente existe se todas as partes envolvidas o consideram como tal. Meus pais consideravam trabalhar numa lanchonete um emprego idiota. Admito que não era a coisa mais brilhante e desafiadora do mundo, mas me mantinha ocupado desde que eu havia abandonado a escola. As salas de aula me irritavam, apesar das boas notas que eu tirava. Meus pais me falavam que eu estava desperdiçando minha vida, que o tempo passaria mais rápido a cada ano, que eu deveria voltar para os estudos, pois era inteligente. Essas coisas que os pais dizem. Mas eu não me importava. Também não achavam saudável que eu não tivesse amigos, uma namorada ou demonstrasse qualquer interesse religioso. Mas eu também não me importava.

Eu não era dado a muitos gastos e nem precisava trabalhar para ter o dinheiro que alimentasse meus pequenos vícios, o cinema e os livros. Mas eu precisava manter a mente ocupada quando não estivesse lendo Dostoiévski, Kafka ou Camus, ou assistindo a filmes lynchianos, cronenberguianos, herzoguianos ou afins. Não lia muita poesia, a não ser algo antilírico de vez em quando, o corte seco de um João Cabral. Às vezes passava dias inteiros ouvindo o som anguloso do Kraftwerk (as versões alemãs, que me soavam mais angulosas ainda) e folheando livros de arte abstrata. Eu tinha um razoável bom gosto para arte, admito. Mas tinha certeza de que, se produzisse, se criasse algo, não teria alma. Então, nunca o fiz.

Mas tenho que concordar com eles em uma coisa: era um trabalho idiota. Horário ruim, serviço mecânico, chefes estressantes e colegas de trabalho estressados. Eu ligava o piloto automático e seguia meu dia. Não tinha vida social, de forma que o horário não me incomodava. De casa para o trabalho. Do trabalho para casa. Pontual como um relógio. Uma vez por semana eu ia ao cinema. Sozinho.
Amigos? Não, nunca fui muito bom nisso.

Garotas? Bem, eu também não era bom nisso, mas houve uma garota uma vez... fora a que queimava. Acho até que cheguei bem perto do que se convencionou chamar de amor com ela. Mas meu jeito introspectivo acabou por afastá-la e eu não me preocupei em me reaproximar. Tínhamos gostos parecidos e ela me achava sensível. Eu gostava dos olhos dela e de sentir seu cheiro quando nos abraçávamos, mas ainda não era tudo o que eu queria. Sexo também foi bom, mas não o suficiente. Buscava por algo que eu não sabia o que era exatamente, mas eu sabia que precisava. Buscava? Bem, acho que não, eu não buscava por nada, apenas esperava que viesse, que surgisse do nada em um passe de mágica. Esperava que alguém que puxasse as cordinhas da realidade em algum lugar dissesse algo do tipo: “Ei, vamos dar algo realmente especial para aquele cara que não tem nada de especial, que vive por viver e que não busca absolutamente nada.” Por vezes meu comodismo me irritava, mas ele sempre vencia e eu permanecia apático em minha rotina mecânica segura.

Quando ela me disse que havia estado apenas apaixonada por mim, eu me senti estranho. Um pouco de raiva e um pouco de lisonja. Talvez ela tenha exagerado para não me magoar. Revendo a situação percebo que ela não poderia suportar minha... dissociação das coisas. Entre lágrimas, disse que estar comigo, por vezes parecia estar com um altista. Eu disse um simples “tá” quando ela terminou, então ela chorou mais ainda. Ouvi um “por que você é assim?” brotar de sua garganta. Tive uma vontade breve de abraçá-la e ser carinhoso e tentar fazer tudo voltar a ser como antes (era realmente bom antes?), mas não o fiz. Para o bem dela. Sim, para o bem dela, porque, se ela me perdoasse e tentássemos novamente, eu acabaria, mais tarde, sendo o que sou e a magoaria mais uma vez. Ela não merecia isso. Apenas havia entregado seu coração para o cara errado, que fazia questão de ser errado (ou não sabia como ser “certo”). Eu abaixei a cabeça e murmurei um pedido de desculpas e um desejo de que ela fosse feliz algum dia. Não sei se ela ouviu. Disse que não queria me ver mais, e eu acatei a decisão dela. Nunca mais nos vimos.

Hoje. Manhã. Eu a vejo pela primeira vez. Estranhamente, desde que havia despertado, senti que algo aconteceria neste dia, sentia uma vibração estranha no ar, quase como se ele estivesse elétrico. Deveria esperar por algo que aconteceria em bem pouco tempo. É uma garota ruiva. Faz seu pedido no caixa onde eu estava atendendo. Mas eu já havia visto aquelas formas antes, em sonhos. Havia outros atendentes livres, mas ela esperou para fazer o pedido para mim. Notei isso, pois ouvi alguns colegas cochichando. Mal posso dizer meu maquinal “bom dia” e me vejo preso dentro dos olhos dela. Uma mosca numa teia. Alguns segundos apenas. Eu não ouço o que ela pede, nem tenho certeza de que esteja pedindo algo. Há apenas o sorriso e os olhos dela. Déjà vu. Já os havia visto antes em sonhos delirantes que me faziam acordar suado no meio da noite, procurando por algo. Queimo por dentro. Em todos os sentidos possíveis. É ela. O que eu sempre esperei, o que eu queria sentir desde sempre. É com ela que eu sonho. É ela. Está nela. E eu quero para mim. Tenho uma ereção quase imediata. Eu me vejo com seu corpo em leitos de fogo e compartilhando prazeres ígneos inimagináveis. Em alguns segundos eu a devoro, e ela a mim, e somos um só até nos tornarmos cinzas. Até queimarmos ouvindo a voz do fogo. Parecem metáforas simples para um momento de sexo ardente, mas são exatamente as coisas que sinto e vejo. Exatamente como estou dizendo agora.

“Nossa, você sente tanto ânimo assim por este trabalho?”, disse sorrindo a colega que estava no caixa ao meu lado, me despertando do transe. Ela havia se abaixado para pegar algo e percebeu o volume em minha calça. Minha... musa não estava mais lá. Parecia que nunca havia estado.

Eu não sei em que estava pensando no momento, nunca havia sido tão atirado, mas disse a ela que, se estivesse precisando de entusiasmo como o que eu estava demonstrando para trabalhar naquela lanchonete, eu poderia dividir um pouco do meu com ela. Minha colega ficou tão surpresa quanto eu com minha resposta, mas logo se recompôs e disse que sempre me achara sonso. Trocamos olhares e sorrisos furtivos durante todo o expediente. Nosso turno terminava no mesmo horário. Acompanhei-a até o ponto de ônibus. Não lembro que pretexto usei para isso. Não lembro se ao menos precisei de um pretexto. Conversamos um pouco, e eu notei que seus olhos sempre passavam pela minha calça. Pensei em dizer-lhe que ele estava dormindo, mas que adoraria ser despertado por ela, entretanto me contive. Disse que iria assistir a um filme e perguntei se ela gostaria de me fazer companhia, pois eu sempre ia ao cinema sozinho. Para meu espanto ela aceitou.

O escuro, o ar condicionado e uma cena mais quente de um filme (que não faço ideia de qual era) fizeram com que nos aproximássemos. Ela recuou dizendo que tinha namorado, mas ele estava viajando fazia alguns meses. Disse que ainda o amava, apesar de se sentir solitária. Eu disse que não me importaria de fazer companhia a ela para que não se sentisse sozinha, uma vez que era muito bonita para estar sem ninguém, mesmo que por um espaço curto de tempo. Incrível como é fácil dizer o que as pessoas querem ouvir. Seus olhos brilharam e eu vi uma estranha chama neles. Uma chama familiar. Eu me surpreendia com minhas palavras. Nunca havia sido tão desinibido. Não condizia com minha natureza. Mas sempre havia admirado suas formas, que o uniforme da lanchonete não conseguia dissimular totalmente, e já havia me masturbado uma vez ou outra imaginando seu corpo sobre e sob o meu e o calor que eles poderiam produzir. Eu lhe garanti discrição enquanto a abraçava e acariciava seus seios, cujos mamilos senti duros na ponta dos dedos. Perguntei se gostaria de ir para minha casa. Ela aceitou.

Meus pais e irmãos já haviam se recolhido a seus quartos quando chegamos. A casa era grande e meu quarto ficava afastado dos outros. Em um impulso que ela adorou, peguei-a no colo e adentrei a porta. Ela deu um sorriso e balançou as pernas. Eu também sorri para ela. E a beijei. Os feromônios eram tão fortes que eu quase podia vê-los dançando ao nosso redor enquanto despíamos um ao outro. Em seus olhos eu via a chama novamente, e ela se apossou de mim. Nunca me sentira tão inebriado por algo. Nosso ato demorou horas e alternamos todas as posições que conhecíamos. Seus gemidos e seu corpo, macios. Apertar. Explorar. Xingar. Éramos selvagens delicados. Admito que estava ótimo. Por instantes cheguei a pensar que era isso o que eu senti que estava para acontecer. Que isso era a coisa que eu esperava. O que eu sempre esperei. Mas não era. Descuidadamente, ejaculei dentro dela, mas ela não me recriminou: éramos uma tempestade. Eu estava olhando em seus olhos nesse instante, arfando como um animal. Foi quando percebi que eu estava vendo a garota ruiva em suas feições morenas. Eu beijei sua testa e fiquei feliz por ver o sorriso de satisfação se desenhando em seu rosto. “Você é sonso mesmo”, ela disse antes de adormecer. Fiquei ainda um pouco acordado, aproveitando a sensação do corpo dela junto ao meu. Lembrei-me das aulas de física em que se dizia que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. Imaginei-me fazendo um adendo a essa regra básica: mas tentamos fazer isso o tempo todo e não nos cansamos. Sorri da piada idiota que existia apenas em minha cabeça. E me lembrei do fogo. E me lembrei que ainda faltava algo para acontecer. E eu sentia que estava próximo. Adormeci.

“Tsc tsc tsc. Que coisa feia: estar com uma garota pensando em outra.”

A voz me desperta. É ela. A garota da lanchonete. Ruiva e nua e na minha cama, engatinhando por cima de mim. E a outra ainda estava ao meu lado, mas não acordava. Ela se insinua, felina, ofídica.

 “Não se preocupe, ela não vai acordar.”

Hipnotizado.

 “Você me quer, não quer? Você sempre me quis, mesmo sem saber quem eu era. E hoje, quando fui até seu trabalho, você viajou por dentro de mim. Viu alguns dos mundos que existem atrás dos meus olhos. E você adorou.”

As palavras não se formam, por mais que eu tente. Eu sei que é ela. E eu quero queimar com ela.

“Você ouviu atentamente cada palavra que a voz do fogo cuspia pra você. Estava delicioso. Uma simples amostra e você se tornou capaz de trazer sua colega pra sua cama, vazia há tanto tempo. Vocês se queimaram muito bem, eu vi tudo e adorei seu olhar. Eu esperei nas sombras, excitada e paciente. Tenho muito mais coisas pra te oferecer do que ela pode sonhar em te dar.”

Ela toca meu membro, já rígido novamente. Eu transpiro muito, febrilmente. Muito calor. E vinha dela.

“Hmmm... alguém acordou, hein? Também estou excitada, seu puto. Quer ver? Quer sentir?”, sibilou no meu ouvido.

Ela pega minha mão e põe entre suas pernas. Quente. Macia. Molhada. Ouvi o barulho de meus dedos dançando em sua umidade. Ela geme. Puxo-a pelos cabelos e digo que ela é minha. Ela ri e me beija. Sua língua começa a me queimar. Ela me cavalga e percebo nossos corpos começarem a ficar luminosos à medida que seus movimentos se tornam mais alucinados. Até atingir o ponto de ignição. Brilhamos. Luminescência termogênica.

Não é apenas ela que está me queimando, eu também estou gerando calor. E, num breve delírio de combustão espontânea, eu desapareço. Mas antes, pude tomar consciência do que acontecia ao redor. Fui apresentado ao um cheiro de carne carbonizada e pensei que era de mim que exalava. Minha colega de trabalho, minha família, minha casa. Tudo queimava num grande holocausto feito para divindade nenhuma. Todo o meu lar como um homem de vime que alimentava o estômago faminto das chamas devoradoras. Eu vi criaturas serpenteando entre as chamas. Algumas delas sorriram para mim.

Então, vou para outro lugar.

Cruzo mundos que existem dentro de vulcões. Passo por outros reinos que existem apenas durante o tempo de uso de um palito de fósforo. Vejo manadas de búfalos correndo por imensidões desérticas e as centelhas pirogênicas que seus potentes cascos geram ao bater em rochas. Passo por um morro e espero a escalada de uma pantera, cujas garras produzem fogo no esforço da subida. Observo quando a princesa de um velho reino australiano abandona seu lar para enfrentar serpentes e a sua surpresa quando, ao se quebrar seu cajado, surgem chamas. Caçadores de dragões de todas as etnias em suas aventuras dando a vida para alimentar um mundo de mitos. Vejo Prometeu acorrentado enquanto uma ave de rapina roubava-lhe pedaços do fígado exposto. “Não tenha pena dele. Aquele titãzinho não roubou o fogo dos deuses olimpianos e deu aos humanos por ser bonzinho ou querer abrir suas mentes... ele estava entediado, apenas isso.” E testemunho o fim de Pompeia. “Não se preocupe com isso. A pobre Gaia não recebe atenções de seu marido egoísta. Ela se sente muito só. As erupções vulcânicas são longas sessões de sexo solitário que a coitada se vê obrigada a fazer ao longo das eras para não enlouquecer. Precisa por pra fora um pouco do calor que tem dentro de si e que seu esposo despreza.” Eu brilho. Eu queimo. Ela é toda uma labareda agora, curvilínea e sensual. Caminhamos de braços dados como dois namorados. E eu aprecio seus comentários venenosos como uma criança ouvindo historias de seus pais. “Sabe como é... ‘não há deuses nos quais se possa acreditar’. Eu mesma motivei o sr. Osbourne a compor este verso para ‘I Just Want You’. Gostamos de música, gostamos de inspirar. Eu soprei essas palavras em seu ouvido quando ele estava dormindo.”

Ela havia começado a falar na primeira pessoa do plural. Existiam mais como ela. Eu os havia visto em minha casa hoje e em sonhos quando era criança também. Em meu cruzeiro atemporal eu as vi também. No Hindemburg. Nas visões de William Blake. Em Pompeia. Nos primeiros versos de “Fire” que surgiram como insetos se debatendo na cabeça de Arthur Brown. Em funerais vikings. Em cada momento histórico marcado pelo fogo. Em cada instante de inspiração artística. Em cada acontecimento corriqueiro onde a mínima chama se fazia presente. Salamandras.

Eu vejo todas as histórias e poemas e roteiros que poderia ter escrito. E todas as frases que poderia ter dito para garotas e que despertariam seu interesse. E todas as músicas que poderia ter composto. E todos os olhares expressivos que poderia ter dado e gestos que poderia ter feito, dizendo mais com eles do que o faria com um inútil milhão de palavras. E todos os quadros que poderia ter pintado. E todo o sentimento com que poderia ter retribuído à minha família. E todas as insignificâncias indispensáveis. E todas as fatias de vida de uma banalidade gloriosa que eu poderia ter experimentado até me fartar.

Queimamos juntos e fomos um só numa intensidade bestial. Ela me deixa por alguns minutos, minutos eu acho, não tenho uma noção muito precisa de tempo agora, como já disse. E é daqui que estou narrando tudo isto. Sentado no vazio esperando algo. Eu já sei o que me espera. E sei que é o que eu sempre quis.

Ela volta.

“Eu. Eles. Todos nós. Somos a destruição que precede a criação. Estamos em tudo e fazemos parte de tudo. E somos tudo. Você já se lembrou de sua vida. Já deixou seu legado como uma carta em uma garrafa perdida no mar. Eu precisava de uma companhia diferente e você me serviu bem. Mas agora... agora é hora de queimar, querido.”

Eu sorri para ela e disse: “Eu sei.”

Quixotismo

Eu a via todos os dias. Passava pelo ponto de ônibus em que ela estava todas as manhãs. Todas as manhãs, ela estava com um livro aberto, mergulhada dentro dele. Um volume grosso. Eu sempre tentava ver que livro era. Uma vez, ela o estava fechando, e eu vi: Dom Quixote: não um livro, o livro.

Uma vez, eu vi de relance seus olhos. Um olhar perdido, um olhar de desencontro, um olhar. Tantos quixotes, sanchos e dulcineias naquele olhar, o olhar. Tentando lembrar, penso, às vezes, que aquele olhar veio acompanhado de um sorriso. Às vezes, penso que eu imaginei aquele sorriso, o sorriso.

Eu não a vejo mais, passo ainda pelo mesmo lugar todas as manhãs, mas agora são outras manhãs, não as manhãs em que havia um livro interminável, um (talvez) sorriso instável e um olhar indefinível.

São outras manhãs, manhãs que me lembram de que ela agora deve estar quixoteando por aí, porque sonhar como ela sonhava dentro daquele livro é quixotear. (Como estará enfrentando seus moinhos de vento?) São outras manhãs, manhãs que me lembram de minha covardia, de meu medo de compartilhar com a dona do (possível) sorriso indecifrável, do olhar imarcescível algumas linhas sobre o livro inextinguível que tão bem ficava em seu colo.

Às vezes, penso que eu não teria nada para dizer a ela sobre o livro, porque, obviamente, não fui digno de lê-lo, porque o máximo de quixotismo que eu poderia imaginar seria abordar uma desconhecida com um livro, e nem isso fui digno de fazer.

Às vezes, penso que eu a imaginei – assim tão dulcineicamente – porque precisava da lembrança fantasma dela, de seu (provável) sorriso intransferível, de seu olhar intransponível, de seu livro indefectível no colo: porque precisava desse retrato na escrivaninha velha que está no porão do que insisto em chamar de meu coração.

Às vezes, apenas penso: deveria ter lido esse livro com mais atenção.