quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Quixotismo

Eu a via todos os dias. Passava pelo ponto de ônibus em que ela estava todas as manhãs. Todas as manhãs, ela estava com um livro aberto, mergulhada dentro dele. Um volume grosso. Eu sempre tentava ver que livro era. Uma vez, ela o estava fechando, e eu vi: Dom Quixote: não um livro, o livro.

Uma vez, eu vi de relance seus olhos. Um olhar perdido, um olhar de desencontro, um olhar. Tantos quixotes, sanchos e dulcineias naquele olhar, o olhar. Tentando lembrar, penso, às vezes, que aquele olhar veio acompanhado de um sorriso. Às vezes, penso que eu imaginei aquele sorriso, o sorriso.

Eu não a vejo mais, passo ainda pelo mesmo lugar todas as manhãs, mas agora são outras manhãs, não as manhãs em que havia um livro interminável, um (talvez) sorriso instável e um olhar indefinível.

São outras manhãs, manhãs que me lembram de que ela agora deve estar quixoteando por aí, porque sonhar como ela sonhava dentro daquele livro é quixotear. (Como estará enfrentando seus moinhos de vento?) São outras manhãs, manhãs que me lembram de minha covardia, de meu medo de compartilhar com a dona do (possível) sorriso indecifrável, do olhar imarcescível algumas linhas sobre o livro inextinguível que tão bem ficava em seu colo.

Às vezes, penso que eu não teria nada para dizer a ela sobre o livro, porque, obviamente, não fui digno de lê-lo, porque o máximo de quixotismo que eu poderia imaginar seria abordar uma desconhecida com um livro, e nem isso fui digno de fazer.

Às vezes, penso que eu a imaginei – assim tão dulcineicamente – porque precisava da lembrança fantasma dela, de seu (provável) sorriso intransferível, de seu olhar intransponível, de seu livro indefectível no colo: porque precisava desse retrato na escrivaninha velha que está no porão do que insisto em chamar de meu coração.

Às vezes, apenas penso: deveria ter lido esse livro com mais atenção. 

2 comentários:

  1. Poxa, que lindo Rafael...
    Agora serei eu a garota com o volume interminável nas mãos... Chegou o semestre p/ trabalhar o "Quijote de la Mancha"...

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    1. que bom que cê gostou. adoro esse livro. acho que foi um dos que fiquei mais triste quando chegou ao fim, rs.

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