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quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

eu, que nunca vou correr com os lobos
voar com os gaviões
ou nadar com os tubarões

eu, que não sei pôr numa foto um sorriso sincero simples espontâneo
eu, que não sei me vestir seguindo as tendências impositivas da moda
eu, que não sei me desidentificar com o grotesco sagrado marginal dos monstros
eu, que não sei me preocupar com roupas passadas nem com cama arrumada
eu, que não sei sentir uma data comemorativa no calendário do meu coração
eu, que não sei aceitar um elogio sem questioná-lo de mim para mim
eu, que não sei fugir da ironia que sei que pode me afastar daqueles de quem gosto
eu, que não sei não me valer de uma despedida coletiva em uma reunião
eu, que não sei não me surpreender porque tenho amigos que me ligam às vezes
eu, que não sei ser um escravo submisso e sorridente das coisas que tenho
eu, que não sei me apaixonar pelas exuberantemente perfeitas capas da Playboy
eu, que não sei distinguir os diferentes (tão diferentes?) modelos dos carros
eu, que não sei glorificar os que deveriam (deveriam?) ser meus heróis do futebol
eu, que não sei me empolgar com o último best-seller do novo autor mais vendido
eu, que não sei ser a universidade cujo nome está em meu diploma
eu, que não sei ser o emprego para o qual tanto me preparei
eu, que não sei deixar de ser estrangeiro nem comigo mesmo
eu, que não sei desejar as mesmas fatias de vida que os outros desejam
eu, que não sei me conectar com a maioria dos meus irmãos humanos

eu...
que desaprendo todo dia
a ser objetivamente pragmático nas minhas escolhas desejos sonhos amores

eu, que comungo com a impureza
porque cada cicatriz agrega a lembrança de uma imprudência nossa para com os outros ou dos outros para conosco
porque cada celulite é uma cordilheira minúscula abissal de frustração e fuga de um padrão que só existe em pessoas de plástico
porque cada verruga traz consigo a vergonha da falta de monotonia do relevo epidérmico e macula a embalagem (embalagem de quê?)
porque cada pelo que não deveria estar no lugar em que está de acordo com o que dizem cada vez mais hoje nos lembra de como podemos ser animalescos

há história por trás de cada uma dessas marcas
e a beleza vem desse passado meio esquecido meio relembrado meio ignorado
que caminha com o presente – eterno já ter sido – para um futuro de gloriosa incerteza
a beleza vem da história
e há vida por trás disso
tanta vida nas histórias que se quer esquecer
tanta vida no medo de sentir
tanta vida nas falhas vergonhosas
tanta vida nos vícios secretos
tanta vida nos percursos só percursos
tanta vida...

sou irmão dos que têm medo de amar e amo temerosamente e temo amorosamente suas falas reticentes suas dúvidas incoerentes seus suspiros reprimidos seu isolamento pervertido suas falas disfarçadas suas brechas que se abrem e se fecham às vezes parecem abertas às vezes parecem fechadas depende da luz depende de se o dia está nublado depende da direção do vento depende de o quanto é importante para quem espera o retrato de um sorriso de aquiescência (sempre a amar temerosamente a simetria dessas brechas – as listras de experiência do tigre de Blake)

sou irmão dos que se viciam porque o vício é o que no final dos finais nos move a todos porque o vício é tudo que alivia a dor e dói em mim a minha existência a existência de todos e me vicio no que é licitamente ilícito me vicio no que é ilicitamente lícito porque dói estar aqui, maldita dor de ser, não de ser eu, mas de ser, intransitivamente ser, e tudo esboroa e o centro não segura, Yeats, tudo esboroa e nos viciamos em amor álcool trabalho sexo literatura internet exercícios cinema festas para tentar ser outro ser outros ser tudo menos nós menos eu, eu, peregrino sem rumo de mim mesmo

sou irmão dos que falham e entendo de quebrar com brutalidade as expectativas dos outros e as do pior juiz que tenho que sou eu, eu que me cobro ser o que não sou que gostaria de ser o que não sou o que nunca serei, cercado por um mar de príncipes e semideuses que parecem ser o que mais há nessa vida, disse uma das pessoas do Pessoa à qual sempre recorro quando as minhas falhas quando os meus erros gritam alto demais para mim de dentro de mim em mim obscurecendo todo o resto (não há resto – há o perpétuo falhar)

sou irmão dos que vivem a travessia e não se importam com o ponto de partida e o ponto de chegada porque o que importa, o que rosianamente importa é o onde inconstante onde se aprende a ser: a viagem, o mundo é a viagem o sonho é a viagem o amor é a viagem (quem ousa pensar no fim do mundo no fim do sonho no fim do amor quando está mundeando sonhando amando?)

como digo a meus irmãos que ser errado é ser sublime?
como digo a meus irmãos que só os corajosos olharam dentro do abismo do medo?

como digo a meus irmãos
que
somos
irmãos
?
Os lobos, de dentro das paredes, uivavam para a lua de seus desejos
Os tubarões, sempre silenciosos, singravam mares de obsessão sanguínea
Os falcões cruzavam, com o orgulho dos falcões, céus subjetivos
Os insetos se debatiam dentro de casulos de sonhos paranoicos
Um anjo feito de chuva conversava comigo sobre evangelhos não escritos

E eu esperava por você